quinta-feira, 6 de maio de 2004

Dois casamentos e vários funerais

O presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, lançou um apelo dramático à comunidade internacional (CI) para que esta materialize a ajuda que prometeu para a ‘reconstrução de Angola'. Fez ainda questão de recordar à CI que o conflito armado acabou há cerca de ano e meio. Essa é que é essa. "Peço que a nova realidade que vivemos desde o fim do conflito armado, há pouco mais de ano e meio, seja correctamente transmitida aos dirigentes máximos dos vossos países para que estes possam agir em relação a Angola com conhecimento de causa e sentido de responsabilidade", afirmou o Chefe de Estado angolano.
José Eduardo dos Santos, adiantando que a realidade angolana "pode ser crucial para o reforço da cooperação bilateral, que permita à comunidade internacional materializar finalmente a prometida ajuda à reconstrução de Angola". Pois bem, a realidade angolana existe - é verdade - mas ela é penosa e mete dó e assume a cada dia proporções bíblicas! E a comunidade internacional conhece-a de perto, porque convive com ela diariamente, mas não se retrata. Não.
Este é – pode não o parecer - o apelo de um chefe Estado daquele que é uma das maiores potências africanas e que se dá ao luxo de pagar ‘do seu bolso' cerca de 10.000.000 USD (sim, cerca de dez milhões de dólares norte-americanos) para casar duas filhas. O apelo é de alguém que, para os ditos casórios, freta aviões para transportar convidados, recruta os serviços de um grande grupo hoteleiro para que nada do melhor falte aos convivas. É um apelo do homem que dirige uma ‘democracia' que não vai a votos há muitos, muitos anos. É um apelo do presidente de um país que conta com perto de 70 (!) ministros e vice-ministros. É um apelo triste que aos homens verdadeiros, dignos, só pode envergonhar pelo descaramento. Ainda mais triste se revela quando Eduardo dos Santos pede "uma acção internacional de grande envergadura, a exemplo do que ocorreu noutros países que viveram situações similares”. Quer ele dizer países amigos de Angola e corruptos como todos eles são. O mais triste é o apelo ter sido feito perante os diplomatas acreditados em Luanda, tendo mesmo passado a mensagem de que o seu país está a preparar-se para dar, este ano, "um passo decisivo em frente". Para meu espanto, a estocada final ou, por cima da queda, o coice: o decano dos embaixadores acreditados em Angola, o brasileiro Jorge Tunay, considerou que 2003 foi para Angola o ano da consolidação da paz e da democracia, e desejou que o ano em curso seja fértil em realizações em termos de reconstrução do país. "Que 2004 seja fértil em realizações na gigantesca tarefa que Angola tem na reconstrução nacional", afirmou Gorge Tunay. Eu prevejo um ano fértil em mais casórios, alguns baptizados e – é isto que me afecta mais – muitas mais mortes por desnutrição de milhares de crianças angolanas…