sábado, 26 de maio de 2012

... O Perfume (o livro)


"Olá, Aly


Estava no Facebook, quando uma pessoa por quem tenho enorme respeito, apesar de muitas vezes discordar do que escreve, publicou um artigo sobre a sua prisão. Despertou-me a atenção, porque seres humanos rebeldes e corajosos são sempre fascinantes. E nos seus olhos existia a centelha que vi nos olhos de uma menina (é já uma mulher e mamã, enfim...) que conheci em Moçambique. A mesma cor, a mesma coragem, a mesma força de Vida e a mesma sombra. Aquela sombra…

A menina de que lhe falo, chega a Xai-Xai (Moçambique), com os seus 23 anos, uma cadela e a força do seu olhar. O seu objectivo: marcar a diferença na vida das crianças da Praia de Xai-Xai. E sozinha construiu essa diferença. Imagino que, neste momento, esteja muito cansado. Imagino apenas, porque sei o quanto a vida africana nos consome em emoções, mas não sei o que é viver essa luta que está viver. E é aí que cada um de nós estará sempre sozinho. Só o António Aly saberá qual é o motor da sua existência, quais são os seus objectivos, qual a sua missão e os seus limites.

Apenas lhe vou dizer algo e perdoe-me se considerar uma intromissão: o António é dono do seu destino, mais ninguém. Neste momento, é muito conhecido. Nestes casos, lembro-me sempre do livro o Perfume. As multidões (existe sempre uma parte de nós que deseja, ainda que inconscientemente, atrai-las) podem acabar por nos devorar. Seja leal a si próprio nas suas decisões, apenas isso. As únicas pessoas a que deve algo são aquelas que ama e que o amam e que generosamente aceitam estar consigo, apesar de terem o coração sempre em sobressalto. E essas estarão sempre consigo, seja quais forem as suas decisões.

Anteriormente enviei-lhe uma mensagem, desejo sinceramente que não o tenha ofendido. Não sabia quem era. Apenas a sua história me comoveu. Não sabia que não precisava dessa ajuda. Vivemos tempos esquisitos, cada ser humano com a sua luta. A coragem de uns serve de força para outros. As histórias de uns servem de motor para outros. E no fundo, o que fica é que todos somos humanos, demasiado humanos e às vezes, maravilhosamente humanos.

Desejo que esteja recuperado e com a maior serenidade possível, dentro das circunstâncias. Cada ser humano sabe do seu destino e não vou fazer qualquer consideração sobre esse assunto. Apenas desejo que uma energia superior o proteja, assim como aos que estão junto a si. Se necessitar de qualquer colaboração a nível humanitário, desde Portugal, basta informar o que é necessário fazer. A nível politico, não sou guineense, não tenho legitimidade para me intrometer.

Não necessita responder a esta mensagem, nem tão pouco agradecer. Há coisas mais importantes que tem a fazer.
Mas se necessitar de qualquer tipo de colaboração, não hesite. Não lhe desejo coragem, porque isso não lhe falta, mas desejo-lhe sabedoria e protecção,que nunca são demais.

Paz para o povo da Guiné. Que o António continue a contribuir para a construção dessa Paz e que a encontre em si. Não sei lhe deveria escrever isto, afinal não passo de uma utópica e o que o Aly precisa neste momento é de muita racionalidade: proteja-se. Sem se trair a si próprio, proteja-se.

Não conheço a Guiné, não vivi aí. Não se pode falar sobre nada, sem se ter vivido. Parece-me que o seu motor de vida está ligado à Guiné-Bissau. Um sentimento maior que tudo, chegando a ser obsessivo. Não sei se estou certa. Conheço esse sentimento e acho que só mesmo no contexto africano conseguimos sentir assim, sem nos sentirmos ETs. Em nenhum outro lado a natureza humana se revela de uma forma tão crua: na sua bestialidade, na sua crueldade, mas também na sua pureza, dignidade, força e superação. Em nenhum outro lugar somos tão verdadeiros perante nós próprios. No ocidente, encobrimos tudo isso com muitos conceitos ocos, à escolha para todos os gostos.

Oxalá, esteja errada, mas parece-me que os próximos tempos serão muito dolorosos para a Guiné.Mas em todos os lugares, existem pessoas que são catalizadores de mudança. E a verdadeira mudança faz-se com sabedoria e demora muito tempo.

Cuidado com os actos movidos pela adrenalina. A Guiné vai precisar de si, durante muitos anos. E que maior recompensa lhe poderá ser oferecida do que ver surgir uma nova Guiné, que ficará sempre muito aquém do que o Aly e pessoas como o Aly idealizaram, mas que será uma melhor terra para o seu povo. Tempos de Bosta, estes. Mas outros virão. Não se perca, Aly.

Imagino que sair da Guiné e aterrar na Tugalândia não seja o melhor dos bálsamos. Mas não se perca na dor e confusão. Posso estar errada, mas os seus textos estão confusos, doridos, violentos. Força! Não desista.Não desista de nada, inclusivé da sua saúde.

"Se perder um amor... não se perca!
Se o achar... segure-o!
Circunda-te de rosas, ama, bebe e cala.
O mais... é nada."

A maioria de nós, de alguma forma, está a perder algo, Aly. Se nos perdermos de nós próprios, a coisa vai ficar bem pior. Circundar de rosas, amar (existem tantas formas de amor). Força, você tem uma marca. Nada será fácil para si. Mas a natureza deu-lhe muitos dons para enfrentar tudo o que vier. É um previligiado. Depende de si, a forma como vai utilizar tudo isso como bálsamo para o seu sofrimento e dos demais.

Nkosi sikelel' iAfrika

E também a si.

Júlia R."