domingo, 16 de fevereiro de 2014

Morreste-nos


A notícia chegou-me ontem. Assim: o (Fernando Mário) Mota morreu. Esta é a minha homenagem ao homem, ao meu colega de partido, de infortúnio. Fomos presos e espancados. Perdoamos mas não esquecemos. Corria o ano de 1992 - fomos, assim, ingloriamente as primeiras vítimas da abertura do País ao multipartidarismo. Hoje, no blog, vou lembrar o 'Nando' Mota. Que a terra lhe seja leve e que descanse em paz.



O Nando morreu em Portugal, com 54 anos de idade. Sofria da diabetes, foi operado tendo-lhe sido amputado um membro. Sofreu uma infecção, e dois dias depois complicou - e morreu. Assim mesmo, até parece fácil morrer. Conheci o Nando Mota há vários anos, era eu ainda um catraio. O pai do Nando, o Sr. Daniel Mota, era filho de Bolama tal como o Sr. meu Pai. E o resto é isso mesmo: história.

Mas quis o destino que eu e o Nando nos mantivéssemos juntos. E tudo aconteceu no PCD. Muitas alegrias, e tragédias também. Em 1991, obrigados e pressionados pelo resto do mundo, 'Nino' Vieira e o PAIGC cedem e abrem o país ao multipartidarismo. Nascia assim um ‘fórum de reflexão’, que viria a tornar-se no Partido da Convergência Democrática - o PCD, fundado no Bissau Sheraton Hotel. Quando o partido foi legalizado no Supremo Tribunal, a festa de comemoração foi na ilha do Maio... Um partido que tornar-se-ia famoso, pelas melhores e mais ainda pelas piores razões (de partido-satélite de Nino a outros adjectivos, tudo se colou ao partido que quase viria a desaparecer da cena política guineense...vai-se aguentando, ao pé coxinho.)

No dia 25 de fevereiro de 1992 (estava eu a caminho dos meus 26 aninhos, com o serviço militar cumprido seis anos antes) o PCD, no âmbito do Fórum Democrático, que congregava quase todos os partidos – menos o PAIGC, claro!, iniciou uma campanha de rua ensurdecedora e provocadora: o motivo era mobilizar o povo para a 1º manifestação no âmbito do dito fórum, e que teria lugar no terreno onde hoje está a Assembleia Nacional Popular - era uma espécie de feira popular (em certa medida ainda é...)

Como conhecíamos as manhas do regime, o partido alugou um táxi que se manteve discretamente a uma distância segura da carrinha onde viajavam quatro pessoas e dois megafones. Nesse dia, logo no primeiro dia, a polícia mostrou os dentes mas não chegou a morder. Mandaram a carrinha encostar e depois, para não criar ondas, escoltaram-na até às instalações do ministério do Interior. A sua salvação? O pessoal que estava no táxi: assim que pressentiram que os seus camaradas iam ser abordados, comunicaram logo a direcção do partido, que agiu com a rapidez de uma flecha: chegaram ao MI antes dos detidos, salvando-lhes o dia, e a pele. Mas no dia seguinte...

26 de fevereiro de 1992, 17h. Uma carrinha sai da sede do PCD para nova mobilização. Lá dentro, para além do motorista, estava o Nando Mota, eu, e mais dois militantes do Movimento Bã-Fata. Tínhamos sido sumariamente escolhidos para a empreitada. Ainda na sede, alguém pediu-me que não fosse. Motivo? O jornal 'Baguera' e o suplemento 'Feretcha' (as dores de cabeça do regime) estavam em preparação. Mas mesmo assim fui. Fiz bem?, fiz mal? A verdade é que estou aqui, hoje, para contar a história, desconsolado por o Nando não a ler.

Saímos da sede, subimos a rua Eduardo Mondlane, cortamos à direita na avenida do Brasil e assim que chegámos ao alto-crim ouviu-se um ruído agudo, bastante desagradável para quem está por perto: os megafones estavam ligados e era só debitar as palavras de ordem (algumas estavam escritas num papel A4, outras saíam na hora, com ou sem rima. O que importava mesmo era protestar, malhar na velha senhora e no seu testa-de-ferro, e isso foi feito com bastante entusiamo mesmo. Do alto-crim, descemos toda a avenida sem parar e num ai estávamos na Chapa de Bissau. A ideia era fazermos a inversão de marcha no actual Libya Hotel e fazer o caminho inverso de regresso à sede.

Mas a segurança do Estado e a polícia do ministério do Interior decidiram por unanimidade trocar-nos as voltas e estragar o nosso dia. Torná-lo num inferno, num quase massacre. Rolávamos na faixa da direita, a uns 15/20 km/h. Queríamos que as pessoas - para além de ouvirem - percebessem a nossa mensagem, que 'mimavam' o Nino Vieira e o 'seu' PAIGC.

Mas chegados ao hospital 3 de agosto, tudo correu terrivelmente mal. A carrinha encostou e pediram a um dos nossos que saísse para checar o som, se estava bom, se não estava alto demais, se não 'arranhava'. E assim que essa pessoa desce e anda uma dúzia de metros, uma carrinha amarela da SOCOTRAM (Sociedade de Comercialização e Transformação de Madeiras) aparece do nada e manda-nos encostar. Os gestos assustaram-nos. Três portas abriram-se e fomos literalmente engolidos por uma dezena de militares do MI, armados de AK-47, protegidos por escudos. Usavam ainda capacetes e cada um deles tinha um cassetete na cintura.

Sem muitas conversas - nem brutalidade, confesso - pediram para ver a respectiva autorização e estava tudo em conformidade. Tinha até um mapa desenhado com o trajecto definido, coisa que até ali ninguém tinha violado. Mas a ordem chega pouco depois: todos para o MI. Por incrível que possa parecer e embora fossem duas carrinhas, metade da tropa entrou para a nossa carrinha - onze pessoas dentro de um carro para cinco, mais as suas temíveis armas.

E rumamos para as instalações do MI, mas sempre a pensar que o táxi-salvador já dera conta da nossa periclitante situação. Errado. Quando chegamos à Chapa de Bissau, armei-me em esperto e disse ao motorista que virasse à direita (a intenção era ir para a sede do Movimento Bã-Fata, no bairro do Caracol). Lançaram-me olhares provocadores. Eu estava marcado. Chegámos ao MI e a carrinha entrou a toda a velocidade, com os intermitentes ligados. Outro susto: a maneira como saltavam e a poeira que faziam quando aterravam no chão de terra vermelho.

Primeiro, sentaram-nos lado a lado. Depois, chegou uma espécie de comissário político. Lições de moral, uma quase lavagem aos nossos cérebros bastante baralhados. De repente, chegou o João Monteiro (nas colunas do Baguera e do feretcha era o ‘Djon Montiadur’). Olhava para nós por cima do ombro, no mais completo desprezo. Sentia-se lá no alto. Disse-me: tu, o teu Pai trabalha connosco (na verdade, era mentira... O meu Pai trabalhava no ministério da Defesa, aliás, foi o único emprego que o meu Pai teve na sua vida desde a independência da Guiné-Bissau, até morrer, em 2001) e tu andas aí aos partidos. Tu sabes o que é que nós fizemos para estares hoje aqui? Sabes quantos morreram? E agora querem falar em democracia, multipartidarismo... A velha história do ‘nba luta’...

Depois veio o Chico. Uma figura pequenina, redonda, meio careca. Fumava desalmadamente, gesticulava, e mascava noz de cola que depois cuspia para o chão de terra. Não parava de espumar pelos cantos da boca. Apelidou-nos de tudo, referiu que não passávamos de «bandidos e contra-revolucionários» e quando perguntou «porque nos mandam e não vinham os chefes», o meu coração acelerou e depois quase parou de bater. Era mau sinal.

O Nando Mota, que estava ao meu lado, segredou-me: «Ticha, prepara-te. Vão espancar-nos!» Não quis acreditar, mas também não tinha dúvidas de que tal acto pudesse suceder. Assim que o Chico deu-nos as costas e desamparou a loja, vimos seis sombras a atravessar uma luz baça. Eram homens, vestidos de negro, bem protegidos e cada um deles trazia um cassetete de 60 cm - made in Checoslováquia. Então, apareceram mais homens, compondo um círculo imperfeito, mas enorme. Parecia um filme. E o primeiro «contra-revolucionário» foi chamado. Era um militante do movimento Bã-Fata. Foi severa e brutalmente espancado. Nós assistíamos atônitos. E fizeram o mesmo com cada um de nós. Depois, não satisfeitos pela ‘façanha’, mandaram-nos tirar as roupas. Sentaram-nos debaixo de uma torneira no pátio e abriram a água. Divertidos, molharam um a um.

Molhados, o espancamento dói mais: o cassetete, em contacto com a pele molhada, escorrega e a dor é lancinante. Foram outros tantos minutos de espancamento, de humilhação. O pobre do motorista levou nas plantas dos pés – diziam a rir que um pé (o esquerdo) pisava a embraiagem e o outro, o acelerador e o travão...Assim que acabávamos de ser espancados, mandavam-nos sair por um corredor ladeado de mais homens, que aos pontapés e murros nos acompanhavam até à saída do MI. Lá fora, havia um carro para cada espancado; assim que um saía, era logo enfiado para dentro e conduzido ao hospital. Chegaram tarde, os do partido, desta vez. Eu ainda pedi ao motorista para passar no Tabanka, pois tinha que desmarcar um jantar que era para acontecer nessa mesma noite...

No hospital – e isto que estou a dizer foitudo gravado em vídeo por gente do Movimento Bã-Fatá, e o Helder Vaz sabe disso – fomos recebidos à porta pelo próprio director, que nos disse sem mais rodeios que tinha ordens superiores para que não fossemos atendidos. E não fomos. Fomos antes bater à porta do Embaixador sueco – representante de um dos países mais dignos à face da terra, que nos ajudou muito na luta pela nossa independência. Assim que abriu a porta e viu gente ensanguentada, fechou a porta. E voltou a abri-la pouco depois. Perguntou ao ‘Nado’ Mandinga e ao Hélder Vaz o que se tinha passado.

Depois das explicações, e sem que pudesse fazer muito mais, o embaixador contactou o seu staff e fomos rapidamente conduzidos ao dispensário da Embaixada – que era isso mesmo: um dispensário, e não um hospital. Eu tinha uma fractura na clavícula, lesões várias, muito sangue, as mãos inchadas – efeito das palmatórias. O Nando Mota – e isto aconteceu até ao último dia que o vi com vida – queixava-se sempre da ‘rabada’, os do Movimento Bã-Fata saíram igualmente lesados. Para além de feridos (alguns com gravidade) ficámos com o orgulho molhado...

Fui o único que foi evacuado para tratamento em Portugal. Fui espancado no dia 26 de fevereiro de 1992 e só em outubro, perante várias insistências das representações diplomáticas, com destaque para a da Suécia, que repreendeu severamente o governo, avisando-o que não toleraria mais actos dessa natureza...

Enfim, mais um capítulo negro mas orgulhoso da minha curta vida que partilho com vocês. Ao meu amigo Nando, que me guarde um lugar perto dele, onde quer que esteja. A luta continuará onde quer que estejamos. AAS